Nós, os desertores de classe
Como os livros de Édouard Louis ajudaram a nomear as angústias da minha ascensão social
Édouard Louis nasceu numa família operária no norte da França e teve a infância moldada pela pobreza, a violência e a homofobia. Ao ingressar no ensino médio em Amiens, uma cidade maior, Édouard vislumbrou a chance de ascender socialmente e romper com o destino dos homens de sua família: o trabalho operário e o alcoolismo. Para criar uma nova vida, o escritor se impôs uma metamorfose profunda que incluía ler avidamente tudo o que via pela frente e até mudar a sua risada. Por fim, veio a transformação mais simbólica de todas: trocou seu nome de batismo, Eddy Bellegueule, por Édouard Louis.
Ao se distanciar de sua origem, Édouard magoou muitas pessoas que amava, além de ter sido acusado de trair a classe à qual pertencia. Em Lutas e metamorfoses de uma mulher (Todavia) ele conta que, na verdade, se tornou um desertor de classe por vingança contra a sua infância. No exército, o desertor é um soldado que abandona o posto militar, atitude considerada uma traição máxima.
“O capitalismo é o inimigo. Mas não é fácil de enfrentar. Mudar de classe também nunca é fácil e não garante felicidade. Pode te afastar de uma vida autêntica. É o que meu livro diz. Existem muitos grupos marginalizados na sociedade, mas acho que desertores de classe são uma espécie de minoria oculta. Talvez isso nunca mude. Mas sempre há a sensação de viver um duplo exílio. Você não pertence e provavelmente nunca pertencerá propriamente à classe para a qual se muda, mas ao mesmo tempo você nunca pode voltar para a vida que deixou para trás, e isso pode te deixar melancólico, mesmo que você quisesse deixar tudo para trás.”
Tradução livre da entrevista de Édouard Louis para o The Guardian em 2024
Quando ouvi a expressão desertor de classe pela primeira vez, me senti compreendida. Finalmente tinha encontrado um jeito de nomear um incômodo antigo. Até ali, ao falar da mobilidade social pela qual passei, eu usava palavras como mudança, ascensão e crescimento. Palavras positivas, mas que não expressavam o misto de orgulho e culpa que eu sentia toda vez que entrava num avião ou saía para jantar fora. Eu, que fui uma garota pobre criada na periferia do ABC paulista, sentia que não merecia viver esses luxos. Assim como o Édouard, também transito entre duas vidas, sem pertencer a nenhuma delas.

Inadequada
No ensino médio, frequentei uma escola técnica pública que exigia vestibulinho para entrar. Lá, conheci pessoas de realidades diferentes da minha e as questões de classe se intensificaram. Alguns colegas vinham de escolas particulares, usavam roupas da moda, compravam CDs originais na Livraria Cultura do shopping e frequentavam restaurantes com a família.
Aprendi rapidamente quais eram os códigos da classe baixa: as roupas compradas no comércio popular, o sobrenome Silva, a falta de grana para comprar salgados na cantina. Eu sofria nas aulas de inglês, onde os professores pareciam alheios à realidade da escola pública brasileira. Só aprendi inglês de verdade depois dos vinte anos, numa escola particular paga com o salário do meu primeiro emprego CLT.
“Ninguém precisava me explicar, eu via que o mundo era organizado em torno de princípios binários: pesado/leve, barulhento/silencioso, gordo/magro, evidente/sugerido, insistente/sutil, grosseiro/distinto, que são também princípios de classe, e que eu sempre estava, fatalmente, do lado menos legítimo dessa estrutura”.
Mudar: Método (Editora Todavia)
Na universidade, as questões de classe explodiram. Fui de estudante de escola pública para bolsista do ProUni numa faculdade privada. Ali, entrei em contato com a elite paulistana e o distanciamento da minha origem se tornou um caminho sem volta.
Convivendo com diferentes classes sociais, me sentia inadequada o tempo todo. Invejava quem cresceu ouvindo Chico Buarque e Beatles, com pais que tinham diploma universitário e carimbos no passaporte. Na minha casa, ninguém sabe quem é o Chico Buarque, mas toda festa de família tocava Aviões do Forró e Barões da Pisadinha. Por muito tempo, isso me assombrou até a vida derreter meu ego de pseudointelectual e a vergonha se transformar em remorso. Enquanto meus colegas circulavam facilmente em um mundo que não era meu por direito, eu lutava para acumular as mesmas referências tardiamente. Se a faculdade fosse uma festa, eu estava ali de penetra.
Assim como Édouard, tive vontade de soterrar a minha origem para viver uma nova vida. Acontece que vestir essa máscara machuca e o sentimento de inadequação não abandona os desertores de classe. Há sempre um hábito que escapa para fora da nossa personagem e uma aresta da vida passada que não pode ser apagada. Talvez seja o sotaque, o jeito de pegar nos talheres, o lanche que levamos de casa para economizar, as roupas sem marca.
O sentimento de inadequação só aumentou quando entrei no mercado de trabalho. Os melhores estágios estavam reservados para quem tinha o sobrenome ou a aparência certa e um intercâmbio high school no currículo. O mito da meritocracia caiu por terra e virou consciência de classe.
Diário do ladrão
Depois de se mudar para Paris e ingressar na prestigiada École Normale Supérieure, Édouard passou a conhecer pessoas influentes que desfrutavam de vinhos caríssimos, estadias em hotéis de luxo e férias em lugares paradisíacos. Durante esse período, ele escreveu o que chama de Diário do ladrão, onde anotava as experiências que considerava fora do seu alcance.
“[Era] como se vivesse uma vida que não era a minha, e o prazer que me atravessava era igual ao que sente um ladrão”.
Mudar: Método (Editora Todavia)
Quantas vezes já me peguei vivendo coisas e momentos que pareciam não me pertencer? Que alguém acabaria com o meu disfarce de impostora? Até hoje, mesmo morando na Holanda, ainda tenho medo de perder tudo e voltar para o bairro onde cresci. É como se eu tivesse construído a minha vida com um delicado castelo de cartas prestes a desmoronar.
Por muito tempo, desejei ter nascido em outra família e em outra classe social. Simplesmente porque a vida seria menos complexa e o sacrifício não seria visto como parte do caminho para uma existência digna.
Chegar lá
Aos 32 anos, Édouard Louis é um fenômeno literário com livros publicados em diversos países, apartamento próprio em Paris, além de cultivar amizades com escritores como Annie Ernaux e Didier Eribon. A metamorfose parece ter dado certo. Ainda assim, ele se questiona:
“Às vezes penso que toda essa luta foi em vão e que fugindo lutei por uma felicidade que nunca obtive”.
Mudar: Método (Editora Todavia)
Também me pergunto: valeu a pena? Claro que valeu, mas teve um custo. Muitas vezes acho que fui longe demais com as minhas ambições. Eu não poderia ter me contentado com menos? Cada conquista carrega o peso da culpa e da insegurança que só quem “venceu” na vida conhece.
A história de Édouard poderia ser contada como uma narrativa bonita de superação da pobreza, exceto que ninguém supera completamente as marcas deixadas pela pobreza e a violência que presenciou. Romper com um caminho predestinado parece um ato heroico, mas não é.
Que abraço essa newsletter, me identifiquei demais. Também fui bolsista do ProUni e o choque de realidade ao entrar na faculdade foi real. O contraste só aumentou quando mudei para São Paulo e comecei a circular entre pessoas da classe média alta paulistana. Mesmo já sendo outra, mesmo já tendo "superado a pobreza" (porque ganhar algum dinheiro não é o suficiente para superar isso), nunca me senti tão pobre, mal vestida e atrasada. Migrar pra Alemanha foi fichinha depois dessa experiência.
é curioso mesmo como o inglês é muito usado como marcador social. meu inglês nunca foi bom e eu morria de vergonha de falar perto dos meus colegas de trabalho. era muito comum rirem de uma fala ou um texto escrito em inglês de alguma pessoa do escritório. então eu morria de medo de ser descoberta. fui aprender inglês de verdade, de verdade mesmo, com mais de 30 anos, porque tive que me desenlaçar desse tanto de trava que eu tinha em relação a mim e quem eu era falando inglês.
eu também sou uma adoradora desse tipo de narrativa de ascensão social, e também AMO o lugar, mudar: método, o que é meu, a tetralogia napolitana e todos esses livros que mostram pessoas escapando dos próprios destinos através da educação. dar nome às coisas e mostrar pras pessoas que aquilo não aconteceu só com elas é tão bonito e ajuda a amenizar a dor das lembranças que tudo isso causa na gente. ajuda a fazer as pazes com a gente e com a nossa origem.